quarta-feira, abril 29, 2009

2 + 2 = 5 ...

E é tal qual um blind-date o que acontece diariamente ali em meio àquelas paredes. Eu chamo, nós dois nos olhamos, e a partir daí nunca dá pra saber o que de fato vai ocorrer. Não adianta ficar planejando metodicamente ou decorando muitos scripts.

Tem vezes em que a empatia é instantânea, quase que mágica. O papo flui sem que você precise fazer o menor esforço. E quando me dou conta, já estão a se despir sem o menor constrangimento - como se nos conhecêssemos há séculos.

Tem aqueles que logo na apresentação já dão bom-dia esboçando um sorriso acolhedor, o que acaba alegrando mesmo a segunda-feira mais ingrata. Os sérios e os visivelmente nervosos a gente tenta quebrar com alguma piadinha espirituosa. A piadinha também costuma funcionar com os que não conseguem disfarçar a expressão desconfiada de essa-pirralha-recém-saída-do-colegial-não-deve-saber-nada-de-medicina.

Com os adolescentes, a gente fala sobre música e sexo seguro, e eles ficam me olhando com uma cara espantada quando começo a perguntar o que pensam pro futuro. Porque nessa idade eles têm sonhos lindos, utópicos-e-megalomaníacos, e além de eu adorar escutá-los, nunca é demais ouvirem que podem sim alcançá-los. Mesmo nascendo e vivendo em condições nada ideais - muito menos justas.

Com as vovozinhas, a gente presta atenção nas estórias de vida e elas retribuem com um abraço afetuoso. Vale também mandá-las puxar minha orelha se eu começar a falar muito rápido e atropelando palavras, como é o costume.

Os monossilábicos, os mal-educados, os que te cantam, e os que mal olham na tua cara são um desafio imenso à paciência e ao humor. É quando a gente respira fundo - várias vezes - e tenta dar o fundamental de cuidado de que eles precisam. Ao mesmo tempo em que fica xingando mentalmente e querendo que eles saiam de lá o mais rápido possível.

E é claro que é sempre muito gratificante quando ouço um "muito obrigado" sincero, um "doutora, você é muito atenciosa", ou "queria que fosse você quem me atendesse nas próximas consultas". Mas o que faz valer a pena mesmo, o que me faz ganhar o dia, é quando percebo que talvez algo do que eu tenha dito além medicina vá fazer pelo menos um pouco de diferença na vida daquela pessoa, que vai ressoar de alguma forma – já que sempre ressoa na minha.

Porque não é só examinar, prescrever remedinho, e trabalhar pelo serviço público. Não é só se indignar com os canalhas aos montes, entristecer-se com as desigualdades, e achar que isso te isenta de qualquer culpa. A solução não é ficar com pena, votar, e ir dormir com a consciência tranqüila.

Tem tanto que eles - a senhorinha, o jovem, a mulher do sorriso acolhedor, e o monossilábico - podem fazer por eles mesmos; pequenas mudanças no dia-a-dia, na própria comunidade. Às vezes falta só alguém prescrever lentes e acender luzes pra que eles próprios possam enxergar que há sim um caminho diferente, de melhores condições e oportunidades; que há sim alternativas. E para ter esse carimbo, tal receita, e o isqueiro em mãos não é preciso ter CRM, basta ter RG.

Não é caridade, sabe. É simplesmente fazer a parte que te cabe sempre que algo incomoda. Abster-se também é posicionamento. É contribuir para deixar como está. É de certa forma concordar. Ou pelo menos, não discordar o suficiente.

E óbvio que não é fácil, mas talvez seja menos impossível do que a gente tende a imaginar. Pra um dia vir a dar certo, só é preciso que alguém comece. Só é preciso que eles também se vejam como algo mais; como questionadores, fiscalizadores, e - principalmente - potenciais transformadores disso tudo. Tanto quanto eu. Mais do que eu.
A voz deles pode ser mais forte do que tudo o que tá aí. Merece ser mais forte do que tudo o que tá aí. Porque na verdade, não são eles e eu. Somos nós. Ou pelo menos é como deveria ser.


"Cutucou por baixo, os de cima caem."