terça-feira, abril 22, 2008

Tua cartilha tem o A de que cor?

Olha, antes do avião partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer. Dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe. Dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende?

Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais. Porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas. E se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos. Porque elas não foram existidas completamente, entende? Porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver.
Não, não é isso que eu quero dizer. Não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável. Não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo. Desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas ...

Existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense. Eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito. Ou melhor, pensei sim. Não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia. É verdade que eu sabia que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, de você dentro de mim. E mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, o som das ondas quebrando no meio da noite. Você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, das ondas quebrando. É, eu não falaria.

Uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo. Você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouco que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si próprio. Mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito. Porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas, eu também cantava desvairadamente até ficar rouca.
O que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos conta. É por isso que estou tão rouca assim. Não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende?

Deixa eu te dizer antes que o avião parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado. Assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala; uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira. Não estou sendo agressiva, não. Esperava de você apenas coisas assim: avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento, essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco, derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente. Você não cresceria se eu o mantivesse preso num pequeno vaso. Eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço.

Mas agora, escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs. Não importa a cor. O tempo é só uma questão de cor, não é? Por isso não importa. Eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinha, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer; porque existem coisas terríveis. Eu me perguntava se você era capaz de ouvir. Sim, era preciso estar disponível para ouvi-las. Disponível em relação a quê? Não sei, disponível só. Não é uma palavra bonita?

Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você. Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia. E se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas. E pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?

Dolorida-colorida, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente comprava as passagens, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente em nada. Mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo. Porque eu nem supunha que existisse. Acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas ...

(Adaptado de C.F.A.)

“Não, não me diz que sente. Você tem mais planos, vai em frente.
Não me torture. Não simule. Não me cure de você.
Quem sabe dá certo? Quem sabe dá tempo? Deixa o amanhã dizer ...”