sexta-feira, outubro 12, 2007

Não havia aprendizagem de coisa nova: era só a redescoberta ...

"Quando se fala da vida de um homem ou de uma mulher, quando se faz uma recapitulação ou resumo, quando se relata sua história ou sua biografia, seja num dicionário ou numa enciclopédia ou numa crônica ou papeando entre amigos, se relata o que essa pessoa fez e o que se passou com ela, efetivamente.
Todos temos, no fundo, a mesma tendência a ver a nós mesmos nas diferentes etapas das nossas vidas como o resultado e o compêndio do que nos ocorreu e do que logramos e do que realizamos, como se fosse apenas isso que compusesse a nossa existência.

E esquecemos, quase sempre, que as vidas das pessoas não são só isso: cada trajetória se compõe também de nossas perdas e nossos desperdícios, de nossas omissões e nossos desejos irrealizados, do que um dia deixamos de lado ou não aceitamos ou não alcançamos, das numerosas possibilidades que em sua maioria não chegaram a se realizar – todas menos uma, a última –, de nossas vacilações, dos projetos frustrados e os anseios falsos ou tíbios, dos medos que nos paralisaram, do que abandonamos e nos abandonou.

As pessoas talvez consistimos, em suma, tanto no que somos como no que não temos sido; tanto no comprovável e no quantificável e recordável, como no mais incerto e indeciso; talvez sejamos feitos em igual medida do que foi e do que pôde ser."

A melhor luz de se viver era na madrugada, leve tão leve promessa de manhãzinha.
Como para um pintor que escolhe a luz que lhe convém, preferia para a descoberta que se chamava viver essas horas tímidas do vago começo do dia.

Era cruel o que fazia consigo própria: aproveitar que estava em carne viva para se conhecer melhor, já que a ferida estava aberta.
Descobrindo o sublime no trivial, o invisível sob o tangível - ela própria toda desarmada como se tivesse, naquele momento, sabido que sua capacidade de descobrir os segredos da vida natural ainda estivesse intacta.

Naquela hora da noite conhecia esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo apenas o desamparo de estar viva. A vida era tão forte que se amparava no próprio desamparo.
A mais premente necessidade de um ser humano é tornar-se um ser humano.

E foi pensando em tudo o que pôde ser que ela foi chegando um pouquinho mais longe nessa subida tão escarpada e à mercê dos ventos que é a tal da aprendizagem: a gente se assusta do excesso de doçura do que é isto pela primeira vez, e também sente uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
É um certo medo da própria capacidade, pequena ou grande, talvez por não conhecer os próprios limites.
Mas uma vez dado o primeiro passo, esse era irreversível e empurrava-a para mais, mais, mais! Aquela curiosidade que empurra pelos caminhos da vida real.

Ficava em silêncio muito tempo, um silêncio que não pesava.
Saber-se a si mesma era sobrenatural. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la. Porque agir sem se conhecer exige coragem.
Era a grande liberdade de não ter modos nem formas, apenas porque teve essa coragem de atravessar a porta aberta. E nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas. Mas o coração bate ao reconhecê-la; pois ela é o de dentro da gente.

"Mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar, e via de olhos bem abertos nas madrugadas tão escuras de lua sinistra no céu ..."