terça-feira, março 02, 2010

He wanted a sudden death ...


Surgiu ali na esquina um tanto zonzo, cambaleando pela calçada. Passos lentos, curtos, como se estivesse pesado prosseguir. 
Apoiou-se por um instante no portão. Respirou vagarosa e profundamente. Como que pra tentar recuperar o equilíbrio, e talvez a direção. E sentido(s), recupera?
Se houvesse mais carros no estacionamento deserto não teria encontrado o seu. Não em meio a tudo. Tsunamis e terremotos. Ali, dentro, de si.

Procurou pela chave nos bolsos. Da frente, de trás. Maldita memória. Andava perdendo tudo. Esquecendo tudo. Antes não era assim. 
Tinha dito ao médico. Não pode ser normal um troço desses, doutor. Não tenho idade praquela demência dos velhos. Como era mesmo o nome? Porra, nem do nome da doença se lembrava mais.
Foi quando se deu conta de que tinha deixado a chave dentro do carro, aberto. Óbvio. Estacionamento. 
Riu da própria estupidez. Num misto de aceitação e auto-comiseração.

Já sentado do lado de dentro, fitava a meia dúzia de folhas sulfite. Que vinha carregando consigo desde que saiu do consultório. Com o cuidado e a aflição de quem carrega ali algo tão frágil quanto importante. 
Alguns dos números já um tanto borrados. Mezzo lágrimas, mezzo suor. 
Fitava e re-fitava cada um daqueles valores, os quais já sabia praticamente de cor.

Na esperança de ter deixado algo passar, de encontrar algum engano. Porque só poderia ter ocorrido algum engano. Enganos acontecem. Qualquer um está sujeito a se enganar. O laboratório, o doutor.
Que outra pessoa poderia entender mais de si do que ele próprio? Décadas e décadas de convivência. 

Algumas consultas, algumas amostras de sangue, isso sim tem margem de erro. 
Mas ele? Ele não. Ele sentia. E sabia que havia ali, naquelas consultas, naqueles valores, nas palavras do doutor de minutos atrás, algo de muito errado.

Procurou por um cigarro. Maço vazio. Excelente. Nem de repor cigarros se lembrava mais. 
Olhos marejando. Aquela maldita lágrima que teima em escorrer mesmo contra todas as vontades. Além de desmemoriado agora deu pra ficar emotivo.
Ela ficaria surpresa em presenciar um momento ridículo desses, de emoções transbordando.
Riu mais uma vez de si mesmo. Dessa vez com um ar de deboche.

E agora, o quê? O que a pessoa faz com isso. Com toda essa nova informação.
Já tinha tudo programado. Todos os planos, todos os próximos passos.
A viagem, o apartamento, a conversa com ela. Sim, a conversa com ela. Nada mais de caixa-postal, nem do imbecil com as mãos ao redor daquela cinturinha. Que porra, continuava praticamente a mesma da época da faculdade. 
E com os caras do escritório, com o chefe, tudo resolvido. 
A família então, finalmente iria ouvir do velho aquilo que ele foi incapaz de dizer durante todos esses anos.

Só ficava triste pelo menino. Imaginava ele sem ter pra quem mandar um cartão no dia dos pais, sem alguém pra famosa conversa da camisinha, sem o alguém que apagava os sites de pornografia no histórico do mozilla pra chatice do mas-fernando-ele-ainda-é-muito-novo sequer chegar aos ouvidos dele.
Grande garoto. Talvez a única coisa que tenha saído certa. Merece a lembrança etérea de um pai perdedor, e não a presença real dele por perto. 

Porque na lembrança reinventa-se, reescreve-se. Com certeza o fracasso em pessoa iria ser amenizado e substituído por características muito mais dignas. Bendita saudade. Santo esquecimento que preenche lacunas da maneira que mais lhe convém.

Mas o doutor então chega e diz que os exames mostraram resultados inacreditáveis. Que o que parecia um câncer incurável na verdade era um tumor passível de cura. Uma cirurgia simples e pronto. Cara de sorte, ele disse. A chance de ser algo assim tão benigno era menor do que dez por cento.

Sorte? Ele sequer tem idéia do que dissera. Com aquele sorriso irritante no rosto, de quem traz as boas-novas. Até pra isso um perdedor. Noventa por cento de chance de vencer, e pronto, derrota. 
Fechou a porta o parabenizando com um aperto de mão e um até logo.  Provavelmente imaginando que o choro era de alegria. Mas é óbvio. Vencedores não reconhecem um choro de derrota mesmo quando escancarados na sua frente.

E agora. Diz. Estava tudo certo. Esquematizado. Seria digno, uma fatalidade. A doença, e não uma desistência. Porque nem desistir conseguia. Nem pra selecionar o próprio game over. Mesmo quando há tempos apenas agonizando a espera do golpe final. 
Patético. 
I know, Nina, I know. Either way I lose. I fucking lose.

Riso novamente. De cansaço, de descrença, de vergonha.
De desistência.

...

"Talvez por não conseguir morrer aos bocadinhos como toda a gente - processo a que toda a gente dá outro nome - , morreu antes do tempo ao longo de meia dúzia de segundos mal contados. 
Morre-se sempre em vida, mas há quem insista em ir à frente deixando tudo para trás. 
A verdade é que isto não é sobre ela, mas sobre todos os que nos impedem a despedida. 
E uma despedida não é um aceno, é um momento de crua consciência. 
A dois. 
Ainda que as costas se voltem, ainda que a matemática nos imponha uma subtracção irreversível."